Ciclos e corais
- Liah Santana
- 7 de ago. de 2020
- 3 min de leitura
Li em algum lugar que o hábito de catar conchas é prejudicial ao ambiente marinho, mexendo com todo um sistema que depende delas para se equilibrar. De inicio senti vergonha da minha coleção, de todas as obras que já fiz usando-as como representação da minha conexão com a natureza, enquanto na verdade estava piorando a situação marinha. Com o tempo acabei me dando a liberdade de esquecer de vez em quando, pois poucas coisas no mundo me deixam tão feliz quanto sentir as ondas lamberem meus pés e esforçar minha vista cansada para diferenciar lixo de concha na areia molhada. Nem mesmo o frio desse fim de tarde consegue me desencorajar de escolher uma ou duas peças brilhantes para guardar como um tesouro proibido na lateral do maiô.
No caminho da casa dele a roda da bicicleta da pequenos pulos nos pedregulhos, deslizando minha saia molhada pelo cano onde com dificuldade equilibro meu corpo. A pressa de fugir da chuva iminente é um grande empecilho para devaneios mais profundos sobre o medo de cair, focando todas minhas forças em não atrapalhar suas pedaladas apressadas. Mais tarde, todo esse esforço deixaria uma tensão em suas pernas que nem mesmo minhas massagens poderiam desfazer.
- As toalhas ficam no topo esquerdo do guarda-roupa - falou, como se eu já não conhecesse seu quarto de cor e salteado.
Sai do banho já procurando a gata siamesa que adora subir pelos móveis. Desde que era filhote ela manteve uma energia de exploradora da natureza, conhecendo cada canto dos poucos cômodos do antigo apartamento onde corria apressada, se batendo de uma parede a outra. Chegando nessa nova casa teve que se adaptar a muita coisa. Seus costumeiros, e nada queridos, presentes deixados no meio da cama mudaram de baratas para se transformar em pássaros e outros seres habitantes do jardim e demais espaços que passou a conhecer. Não foi fácil lidar com a mudança em geral, para nenhum de nós.
- Comprei uvas para a sua anemia, pega ai na geladeira - ele disse catando uma camisa grande - Será que essa da? Pode escolher outra se quiser, to muito cansado.
Mesmo com tantos anos juntos nunca chegamos a ser íntimos o suficiente para explorar sua cozinha e remexer suas roupas, apesar dele achar que sim. Vesti a que ofereceu e pedi musica enquanto arrumava minhas coisas. - Qualquer uma - já sabendo que iria perguntar o que queria ouvir.
Deitei secando o cabelo e ele colocou uma do Kamaitachi que enviei pouco antes da ultima briga. Esse é o fato engraçado: não passamos muito tempo sem discutir. Primeiro vem a paixão profunda disfarçada de amizade, depois uma briga intensa, afastamento total e um ímpeto impulsivo que faz tudo recomeçar. Entramos num ciclo quase ourobórico em que não nos entendemos por não termos tempo e não temos tempo porque brigamos por não nos conhecermos o suficiente. Não posso nem demonstrar interesse quando quero, iria mudar demais a dinâmica de poder e não sei como reagiríamos a isso. Então acaba fazendo sentido que possa deitar assim em sua cama, só de camisa, acariciando sua barba úmida, mas precise esperar que me ofereça um copo d'água ou talvez sinta sede até partir. Me passou o beck e sem nem pensar o traguei olhando a chuva ficar cada vez mais pesada. - Pensando em que? - sua voz saiu meio tossida. - Nada não... - devolvi o beck soprando a fumaça para cima - Melhor fechar as janelas e a porta, parece que vai demorar a estiar.
Não que eu entenda alguma coisa de padrões meteorológicos, falar com certeza sobre coisas que não sei virou uma mania chata de se desfazer. Fechei tudo e me aconcheguei em seu corpo quente por baixo da coberta. Pergunto-me se talvez não fosse melhor me manter em pé e dançar, evitar carinhos e afetos que amanhã não significarão mais do que minha saia estendida no varal la fora, mas me rendo ao frio. Só agora percebo o quanto o espelho da parede é distorcido pelas ondulações ocasionadas pelo tempo, nossa imagem torta até parece um casal de verdade. Sinto, com a mão em seu peito, que seu coração bate acelerado em contraponto à serenidade em que acaricia minhas pernas.
- Já vai dormir? Posso ir embora se quiser... - eu sabia que negaria, mas era o certo a se dizer.
- Fica, dorme aqui, só dessa vez. Amanhã podemos dar um mergulho e te levo no terminal.
Pensei por um tempo, fingindo para mim que existia uma real opção de permanecer ali.
- Não posso... você sabe que não posso.
-então me abraça.
Me coloquei sobre seu corpo com cuidado e deixei que seus braços me envolvessem, esquecendo as poucas horas que tinha e deixando me levar um pouco pela textura de sua pele.
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