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Aghostina e o gato

  • Foto do escritor: Liah Santana
    Liah Santana
  • 18 de fev. de 2020
  • 3 min de leitura

Ela deixou um bilhete em cima da mesa da sala. Ou pelo menos foi como disse que fez.

A conheci pedindo abrigo na pousadinha improvisada que meus pais abriram depois de se aposentarem. Era na nossa casa mesmo, usando os quartos que já foram dos meus tios e a sala como recepção para os turistas. Obviamente eu automaticamente virei garçom, serviço de quarto, recepcionista e o que mais fosse possível um pai exigir do filho adolescente. Ela tinha uma cara de que não dormia a dias e um cheiro de azedume que chegou bem antes ao "balcão" onde eu tava bizuiando a vida de algum hospede. Chegou apenas com uma mochila nas costas (contendo um gato cinza que só descobrimos depois de muito tempo) e nos deu uma lista previamente pensada de motivos para deixa-la ficar. Antiquados como meus pais sempre foram, exitaram muito mas a aceitaram na condição de um trabalho não remunerado (vulgo escravo). De primeira nem dei atenção a ela, era janeiro e meus dezesseis batiam na porta. Tudo que conseguia pensar era como contar aos meus pais que ia embora daquela merda de cidade na companhia do meu namorado. Até hoje não sei o que botou na cabeça que tava pronto para isso. Sair de casa e do armário ao mesmo tempo? Conveniente porém estupido. Depois de alguns dias me ajudando na limpeza geral para pagar o quartinho dos fundos onde se alojou, a garota começou a falar. A primeira coisa que me disse é que havia fugido de casa apenas com a roupa do corpo e uma mochila de coisas aleatórias. Logo me empolguei pra saber mais sobre como era viver sozinha, de onde veio o gato, as aventuras que havia vivido, os amores do caminho.

Era impossível imaginar que eu segui-se qualquer caminho que não fosse guiado pela emoção, sempre tive a personalidade romântica dos filmes franceses, daqueles que todos acabam nus e ainda sim elegantes e apaixonados.

Com passar dos dias fomos nos conhecendo melhor. Contei do meu plano secreto e recebi conselhos incríveis. Acontece que ela era assexual e panrromantica, o que significa basicamente que pra família ela era uma depravada que dava pra qualquer pessoa, mas na pratica nem mesmo trocava beijos e vivia de coração partido. Foi isso que a fez fugir, não aguentava mais ver os mesmos rostos a julgando a todo momento. Viramos melhores amigos num piscar de olhos, como era de se esperar.

Sempre que tínhamos um turno juntos, fazíamos tudo rapidinho para ter tempo de sentar do lado de fora e conversar antes de todos acordarem. Era nosso lugar sagrado, onde podíamos falar de tudo sem ser julgados. O meu termino de relacionamento, as crises depressivas dela, o piercing no umbigo que nunca cicatrizava, nossos sonhos de morar juntos numa kombi cheia de bichinhos de pelúcia, o medo de crescer, tudo.

Mais do que uma amiga, ela virou minha inspiração para viver coisas incríveis. Tudo parecia tão intenso quando ela estava envolvida, até lavar a louça se transformava numa terapia espiritual poética. Cada coisa tinha um significado, sempre havia um questionamento ou reflexão profunda para se fazer.

Numa sexta, deixei de sair pra beber e virei a noite sentado na cama dela fumando e falando dos meus dramas e angustias de adolescente. Na manhã que se seguiu um primo me viu saindo do quarto e correu para contar pros meus pais. Em menos de vinte minutos se desocuparam e vieram gritar no meu ouvido. "E se engravidar essa garota? Os dois Sem Futuro vão tirar dinheiro de onde?". Fiquei ouvindo variações das mesmas frases em silencio por um bom tempo, é estupido argumentar com quem não quer ouvir . Até que em dado momento, sem planejar, gritei como um leãozinho aprendendo a rugir: "NÓS SOMOS GAYS, IDIOTAS!". A voz saiu fininha mas tenho certeza que entenderam por tudo que aconteceu depois.

Passou mais de uma semana para falarem comigo novamente. Numa manhã, me mandaram limpar o quarto dos fundos. Ela havia ido embora. Chorei que nem um filhote, dando solucinhos finos. Foi uma decepção enorme saber que tinha perdido não só uma amiga, mas todo o futuro que imaginamos. O gato ficou.

Alguns anos depois, estudando psicologia numa universidade ridiculamente perto da cidade onde cresci, soube de uma garota encontrada morta ali perto. A descrição batia perfeito com ela, na hora eu desabei. Suicidio, disse o jornalista estranhamente calmo, enquanto dava informações inuteis sobre o local do acontecido. Eu fiz o reconhecimento do corpo, ninguém da familia apareceu. Acho que ela já esperava por isso, já que estava vestida como nos dias de folga em que só deitavamos e riamos da vida.

No velorio, fomos só eu, ela e o gatinho.

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