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Lilíta e o emprego

  • Foto do escritor: Liah Santana
    Liah Santana
  • 8 de nov. de 2019
  • 3 min de leitura

Com as mãos tremendo, depois de ver diversos candidatos saírem daquela porta, chamam o meu nome. Uma moça com feição amigável começa a me fazer perguntas padronizadas sobre minhas qualificações profissionais. É difícil responder sobre algo que não tenho, passei os últimos anos muito focada em não envergonhar minha família.

Chegou o momento que tanto vi nos videos de comédia, as perguntas subjetivas:

-Se você fosse um animal, qual seria e por que?

- Eu seria um inseto, uma formiga. Porque sou dedicada e cooperativa.

(Mentira, sou lenta e odeio pessoas)

- Interessante. E uma fruta?

- Essa eu não sei. Talvez uma banana pela versatilidade.

(Ou porque é minha fruta favorita e não pensei outra)

Fui casa, comida, vícios e roupas para contemplar uma pergunta atras da outra. Já próximo ao fim ela remexeu nos papeis e deu uma pequena risada forçada.

- Acho que acabei pulando uma: qual você considera o seu maior defeito?

Parei e pensei um tempo. Seus olhos estavam cravados em mim por pura impossibilidade de fingir distração numa sala tão branca e num tempo tão curto que nos resta.

- O meu maior defeito é o amor.

Soltei a frase compactada, como se fosse um slogan famoso ou ditado ancestral. Continuei:

- Eu sei que parece bobo falar isso, amar devia ser uma das maiores qualidades, deve pensar. Mas quando tudo é muito intenso e ainda sim insuficiente, o mundo parece muito mais triste. Eu amo demais pois nunca aprendi a odiar. Nem mesmo quem me machucou diversas vezes ou simplesmente me tratou como se eu não fosse gente o suficiente para se importar, nem eles me fizeram sentir menos. Isso significa que estou livre de magoas? Não, elas ficam remoendo meu estomago e me lembram todos os dias de qual é o meu lugar. O amor é meu defeito porque é o que me tornaria mais humana e menos funcional. Parece loucura mas é justamente por isso que devia me contratar: eu achei a solução para o meu maior defeito! Em vez de continuar me iludindo buscando interações sociais e auto direcionar todo esse "lindo" sentimento, eu não tenho mais nenhum laço com o mundo e posso focar toda a minha energia a empresa. Veja bem, de tanto amar e não ser amada me vi diante da decisão de continuar insistindo no erro de acreditar nas pessoas ou parar e dar uma utilidade a essa minha existência sem sentido. Obviamente escolhi a segunda opção. Dessa forma, posso usar toda a minha magoa para evitar qualquer recaída e a minha falta de ódio para ser totalmente submissa às necessidades coletivas independente de como me tratem. Sou perfeita para o cargo porque já fui tão machucada que vocês podem me sugar até não existir mais nada e simplesmente me descartar quando não servir mais. Sou como um pano de chão.

A moça me olhou assustada com um sorriso deslocado de sua função. Acho que não sabia o que me dizer. Provavelmente foi a resposta mais sincera que recebera naquela manhã mas nunca poderia me contratar a partir dela.

- Obrigada pelas respostas. Entraremos em contato se tivermos interesse. Tenha um bom dia.

Sai da sala, olhei os outros candidatos, atravessei o comodo e peguei um café. O que eu queria mesmo era um bom copo de licor de canela para adoçar minha manhã.

Prometi para mim que só iria beber quando pudesse pagar meu próprio coma alcoólico então me mantenho sóbria desde então. Nem mesmo gosto do amargo desse grão, porém me passa a imagem de adulta, como um elixir de envelhecimento para minha alma jovem e cansada. Visto meu casaco amarelo, ando até a porta e me despeço do segurança com uma reverencia involuntária cuja vergonha vai me perseguir a memoria até chegar em casa.

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