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Micróbios

  • Foto do escritor: Liah Santana
    Liah Santana
  • 4 de jun. de 2019
  • 3 min de leitura

Tatuagens são tipo pinos nos joelhos, só que em vez do universo escolher te jogar na frente de um carro, você escolhe uma borboleta no seu quadril esquerdo pro resto da vida. Não me admira o fato de querer marcar os momentos, tudo passa muito rápido.

Num segundo estávamos lá fumando e dançando com os amigos e no outro to aqui de preto olhando essa imensidão verde do Cemitério Municipal. To meio adiantada, o resto das pessoas deve chegar daqui a pouquinho para prestigiar o corpo. O defunto era pouco mais velho do que eu e sem nenhum problema de saúde (além do alcoolismo), realmente se foi cedo e inesperadamente. Ouvi dizerem que aconteceu saindo da mesma festa em que eu também estive a alguns meses atras. Tava num vai mas num vai até ontem quando os órgãos pararam de vez.

Achei estranho o trazerem pra ca, é um lugar lindo mas não está nos padrões da família nojentinha dele. Sempre que estávamos fumando maconha na esquina da minha casa eu me perguntava como deve ser assustador ter todos os privilégios em mão assim, saber que tem todo esse poder e que todas decisões já estão tomadas. Não sou de dar biscoito porém realmente me impressionava a consciência e esforço dele de mudar as coisas a favor dos outros.

Não é o primeiro enterro dessa semana mas é o primeiro que me importo o suficiente para chorar desde que cheguei aqui. Na segunda, por exemplo, foi de uma garotinha de um povoado vizinho. Até bateu uma tristezinha, mas a guria não parou um segundo de correr desde que chegou. Talvez em vida fosse daquelas crianças presas que apanham por qualquer coisa sabe? Tentei acalma-la para perguntar como tudo aconteceu, ela só fez rir na minha cara.

Já na quarta foi uma loucura de tanto homem chegando, não sei se era algum feriado ou o que realmente aconteceu para de repente desfalecer tanto macho junto. O melhor foi os caras que vinham trazer se segurando para não chorar, como se aqui não fosse o lugar mais apropriado para se aceitar qualquer tristeza. Nesse dia aproveitei para tentar entender umas coisas e cheguei numa conclusão: sem a pressão social de ter que estar fudendo alguém, surgem coisas muito mais interessantes naquelas mentes inquietas.

Voltando ao menino do momento, não vejo a hora de acabar a cerimonia para podermos nos rever. Enquanto espero posso comparar nossas cerimonias. A minha foi a três meses e onze dias e teve treze "convidados", dos quais dois já vi hoje. Acho difícil ter mais alguém que conheço nessa multidão que veio vê-lo, nossas vidas não eram tão próximas assim. Ninguém me trouxe flores bonitas nem falou palavras gentis sobre minhas conquistas.

Pensando bem eu fui mais citada por esses padres esquisitos na ultima hora do que pela minha irmã desde que aconteceu o "acidente". Foi naquele mesmo dia que o deixou em coma, só que em vez de estar num carro eu tava no banheiro da festa cheirando pó e tentando conversar com a minha noiva pelo celular. Discuti com ela por algo bobo, que os vermes já devem ter comido da minha memoria, e desliguei sem dizer que a amo. Liguei para pedir carona a esse semi-amigo e foi quando um cara tentou me agarrar e dei um empurram que retornou num soco e na minha cabeça sendo agressivamente partida na pia. Segundo os boatos que pude entender foi falando comigo que o garoto perdeu o controle do carro e bateu na arvore.

É uma loucura imaginar que somos tão frágeis e supérfluos no mundo. Aposto que não vai demorar para reencontrar todos os meus amigos por aqui, eles sim tem o perfil de serem colocados no lugar mais barato do estado. Isso se não forem enfiados em qualquer vala de algum bairro distante.

Sem a vida, o que me resta é recepcionar quem chega e, como boa vegana que tenho sido, torcer para tinta na minha pele não fazer mal aos bichinhos que vierem me devorar.

 
 
 

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